Exposição inspirada em “Grande sertão: veredas” chega a Madri

Exposição inspirada em “Grande sertão: veredas” chega a Madri

RFI Brasil
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Mesclando literatura, fotografia e colagem, a mostra “Travessias do Sertão” está em cartaz na Casa do Brasil, em Madri. Inspiradas no livro de Guimarães Rosa, as obras dialogam diretamente com a cartografia mineira e com as populações que vivem no Alto Vale do Jequitinhonha. O acesso é gratuito.

Ana Beatriz Farias, correspondente da RFI na Espanha

Uma verdadeira viagem. Do “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, aos mais diferentes recantos mineiros, cheios de histórias. Unindo fotografia, colagem e literatura, a exposição “Travessias do Sertão”, que tem quase três anos de estrada, acaba de chegar a Madri, onde fica em cartaz até o dia 3 de dezembro. O projeto, que hoje conta com 32 telas e ocupa lugar de destaque na Casa do Brasil, em plena capital espanhola, nasceu despretensiosamente, a partir de um trabalho acadêmico feito pelo professor e fotógrafo Lucas Sousa.

A ideia, inicialmente, era fazer uma releitura artística da personagem Diadorim, por meio de pinturas corporais e registros fotográficos que imprimissem um tom de mistério, ao não revelar completamente o rosto humano. Isto como parte de uma pesquisa envolvendo questões de gênero e de sexualidade.

“No romance do Guimarães Rosa, Diadorim é um personagem que durante toda a narrativa não se entrega a informações concretas. Se ele é um homem, se ele é uma mulher… O narrador, pelas visões do Riobaldo, traça as linhas físicas corporais de Diadorim com os dois movimentos, né? Tanto masculino quanto feminino. E, para isso, ele recorre, inclusive de uma maneira muito poética, à cartografia de Minas Gerais, à cartografia do grande sertão”, narra Lucas, ao explicar como percebe o universo apresentado pelo escritor que o inspirou.

Reconhecimento que estimula

A primeira série fotográfica, baseada na personagem Diadorim, rendeu a Lucas Sousa e a Wágner Pena – que divide com Lucas a autoria do projeto – uma menção honrosa atribuída num evento realizado pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, onde tudo começou. A partir daí, os dois perceberam que o trabalho poderia ganhar novas dimensões.

A mostra “Travessias do Sertão” foi, então, crescendo e tomando forma. Além do eixo curatorial Diadorim, Lucas e Wágner construíram mais dois: um dedicado à Cartografia sertaneja, em que revelam a natureza e a arquitetura do Alto Vale do Jequitinhonha e outro dedicado às Mineiridades, no qual ganham especial importância algumas festividades típicas da região.

“Cada fotografia ali está representando um tipo de manifestação cultural. Por exemplo, a Festa do Rosário. Tem os marujos, que são os líderes que conduzem a festa com as canções de origem afrodescendente. E temos as rainhas, os reis, condessas, condes… É uma festa muito rica culturalmente”, explica Wágner, se referindo a um dos ambientes da galeria que recebe a exposição. 

Rostos e histórias

Além das festas e tradições regionais, a seção intitulada Mineiridades contempla uma série de retratos de moradores do Alto Vale do Jequitinhonha. “Esses personagens que a gente fotografou vivem ali na região de Couto Magalhães, Diamantina, Serro… Ali na região do Alto Vale do Jequitinhonha. E eu sempre busquei registrar o seu cotidiano. A dona Ana, com seu balaio, a dona Geralda… Então eu busco estar sempre registrando o cotidiano, a verdade. Aquilo que está no momento”, conta Wágner.

O registro desses rostos que também formam, de alguma maneira, a paisagem do sertão resulta num conjunto de fotografias cheias de texturas, contrastes e narrativas. Os fotógrafos contam que muitas das famílias que têm pessoas que foram clicadas como parte da exposição dão à tal fotografia um local de destaque em suas casas. Assim as obras ganham também um outro valor, conectado à comunidade.

Percalços do caminho

Da concepção da mostra “Travessias do Sertão”, no seio de Minas Gerais, até a chegada da exposição em Madri, o caminho foi longo. Os autores tiveram que enfrentar diferentes desafios para chegar a expor na Europa. Por falta de incentivos e de recursos financeiros, a parceria firmada com a Casa do Brasil, em 2021, foi adiada por dois anos.

Mas em 2023, os dois fotógrafos contaram com uma rede de apoiadores que permitiu que eles cruzassem o oceano, como revela Wágner Pena. “Com muita resistência (da nossa parte) e com a ajuda de pessoas, por meio de rifas e de patrocínios também, nós conseguimos trazer esse projeto até Madri”, celebra.

Sobre isso, Lucas Sousa comenta que “muitas regiões dos interiores do Brasil possuem um potencial artístico-cultural extremamente grandioso, mas quando se trata de políticas públicas voltadas para o incentivo da produção e à democratização da arte, a história é outra, é como se arte fosse desimportante e por esse motivo, fosse negado às pessoas o direito de ter acesso a ela, de ter contato com os benefícios que a arte produz no homem”.

Sabendo de todo o caminho percorrido, a realização ao chegar com a mostra “Travessias do Sertão” na Espanha, para Lucas, ganha outra dimensão.

“Parece que eu não estou aqui, estou bem incrédulo. É uma sensação de dever cumprido. Tipo ‘puxa, conseguimos’. Depois de muita luta, de muita resistência, a gente fala que é um projeto de resistência, é um projeto memorial. É um projeto de força política, porque a política envolve também essa questão artística. Ela envolve essa questão de resistir nas sociedades. É uma realização através de muita resistência”.

A exposição “Travessias do sertão” fica em cartaz na Casa do Brasil, em Madri, até o dia 3 de dezembro. O acesso é livre e gratuito, de segunda a sexta-feira, das 9 às 19h.