Juros altos, inflação, guerras, Brics ampliado: o que marcou 2023 na economia
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O ano de 2023 chega ao fim com um princípio de luz de fim do túnel na sequência de alta dos juros que marcou o período e atrasou uma retomada econômica mais robusta, em meio à inflação que permaneceu elevada em boa parte do mundo. As incertezas geopolíticas, com o conflito na Ucrânia e a guerra em Gaza, não ajudaram a economia mundial a decolar.
O coquetel de juros altos e crescimento baixo, somado à desaceleração da China, foi ainda mais perigoso para os países mais vulneráveis, em especial os africanos.
“Nas economias avançadas, vemos que claramente as taxas vão ficar altas durante muito tempo, durante toda a primeira parte do ano 2024, e agora produzem impacto na atividade. Em geral, temos 12 meses de atraso entre o momento em que os bancos centrais sobem as taxas de juros e o momento em que realmente essas taxas afetam a atividade – e elas foram elevadas há pouco mais de um ano”, explicou à RFI Bruno de Moura Fernandes, chefe de macroeconomia da seguradora francesa Coface, presente em mais de 100 países. “Então vamos sentir mais, nos próximos trimestres, o impacto para as empresas, para as famílias”, disse, em entrevista realiza em agosto.
A Unctad, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, previu em abril que o ciclo de aumento de juros vai custar mais de US$ 800 bilhões em perda de renda nos países em desenvolvimento, nos próximos três anos. Além da depreciação cambial, as consequências imediatas nas economias mais vulneráveis – como Zâmbia, Chade, Sri Lanka ou Argentina – foram a explosão das dívidas, a dificuldade de acesso ao crédito e risco de crise monetária, podendo resultar em crise de dívida soberana.
Na Ásia, a crise imobiliária chinesa, o crescimento baixo, de 5%, e o alto desemprego dos jovens na segunda maior economia mundial acenderam o alerta para uma piora da conjuntura. “Já vemos que claramente as exportações chinesas estão caindo pela pouca procura por parte dos Estados Unidos e da Europa, e que o consumo das famílias chinesas também é uma grande decepção, porque, afinal, não tem confiança. Por enquanto, não vemos como a recuperação pode acelerar nos próximos meses”, advertiu Fernandes.
Esse contexto internacional abalou o mercado mundial de commodities e repercutiu imediatamente no Brasil. Cerca de 30% das exportações brasileiras, essencialmente de matérias-primas, vão para a gigante asiática.
Governo sob pressão desde o primeiro diaNo Brasil, o ano começou turbulento, com os ataques aos Três Poderes na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já em 8 de janeiro. A crise política aberta logo na primeira semana do mandato aumentou ainda mais a pressão sobre a agenda econômica do presidente petista, em especial pelo ajuste fiscal, e na contramão da política econômica mais expansionista desejada pelo presidente.
“A economia internacional vai desacelerar e, com isso, os preços das commodities não vão continuar altos como estavam. Essa situação reduz a margem de manobra para adotar políticas mais expansionistas”, previu Daniela Magalhães Prates, economista sênior da Unctad, em janeiro. “O embate com o mercado vai ser um problema. A incerteza política pode ser usada para isso: reduzir a margem na política fiscal e monetária”, antecipou.
Com o país ainda marcado pela polarização no plano interno, o presidente não demorou para iniciar giros internacionais – a começar pela China. Apesar de ser a maior parceira comercial do Brasil, Pequim vinha sendo desprezada pelo governo de Jair Bolsonaro.
"Por uma escolha de Estado, nós saímos da mesa. Essa escolha teve custos, e agora estamos voltando à mesa e isso é extremamente importante, na minha opinião”, disse o pesquisador associado do FGV-Ibre Livio Ribeiro, especializado em economias emergentes e em particular a chinesa. “Tradicionalmente na China, os ritos importam muito – até mais para os chineses do que para a gente. Assim sendo, a presença do presidente muda o nível da discussão e faz toda a diferença.”
A viagem oficial de quatro dias se encerrou com a assinatura de 20 acordos comerciais entre as duas potências emergentes.
Acordo UE-Mercosul travadoDias depois, ainda em abril, Lula retornou à Europa pelo solo português. Em Lisboa e, na sequência, em Madri, o presidente demonstrou determinação em acelerar a finalização do acordo entre a União Europeia e o Mercosul. As negociações do tratado se arrastaram por 20 anos até serem concluídas em 2019, mas o texto ainda precisa ser ratificado pelos 27 países que compõem a União Europeia e os quatro integrantes do Mercosul.
Entretanto, apesar da troca de governo no Brasil, o acordo tomou um balde de água fria logo depois da viagem de Lula a Portugal e Espanha, com os europeus fazendo uma série de novas exigências ambientais dos parceiros sul-americanos. Desde então, diversas séries de rodadas de negociações foram realizadas entre os dois blocos, mas sem conclusão favorável.
Na contraproposta do Mercosul, Brasil e Argentina apresentam pontos que significam a reabertura das negociações do texto assinado há quatro anos, assinalou Andrés Malamud, pesquisador da Universidade de Lisboa e especialista em integração regional na América Latina.
"Se esse acordo se reabre, nunca mais se fecha. Portanto, com as atuais posições, o acordo é impossível. Não vai acontecer – só aconteceria se aceitassem o que está escrito e assinado em 2019, mas ninguém quer, porque os dois lados são protecionistas: a Europa com o seu mercado agrícola e o Mercosul com sua indústria e compras governamentais”, resumiu o pesquisador argentino.
Em dezembro, logo depois de se reunir com Lula na COP28 em Dubai, o presidente francês, Emmanuel Macron, externalizou as divergências, apesar do bom entendimento com o líder brasileiro. Macron não hesitou em considerar o tratado de “antiquado” e “mal remendado”.
"Esse acordo não funciona e é por culpa da Europa, porque a França é protecionista e tem mais nove amigos que são igualmente protecionistas”, sintetizou Andrés Malamud.
Brics terá seis novos membrosPor outro lado, as alianças entre os emergentes prosperaram em 2023. Na Cúpula dos Brics, em Joanesbursgo, em agosto, os líderes do bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul decidiram ampliar o grupo, formado há 15 anos. Seis novos membros foram convidados, na expectativa de fortalecer um bloco do Sul global: Argentina, Etiópia, Egito, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos passarão a fazer parte do Brics a partir de janeiro.
Um dos focos da agenda do bloco foi o uso das moedas nacionais nas transações entre os países integrantes, no lugar do dólar. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), mais conhecido como Banco do Brics, tem papel protagonista neste projeto, ao acelerar os empréstimos nas moedas dos cinco membros fundadores.
O sonho antigo dos países em desenvolvimento ganhou força desde que os juros americanos se estabilizaram em um patamar elevado. O presidente do Instituto Brasil-África, João Bosco Monte, acompanhou em Joanesburgo o andamento das negociações de um projeto “complicado”, segundo ele, para sair completamente do papel.
“Brigar com os Estados Unidos e o sistema financeiro mundial não é fácil. Mas o fato de o Banco do Brics trazer essa agenda e puxar essa discussão favorece para que, eventualmente, as transações comerciais entre os países possam usar outras moedas”, salientou.
Gaza e o temor de um novo choque de petróleoA reta final de 2023 ainda reservaria mais uma surpresa: a eclosão do conflito na Faixa de Gaza, entre Israel e o grupo extremista Hamas. Depois da Ucrânia, mais uma guerra voltou a elevar os preços do petróleo: o risco de expansão para um conflito regional poderia resultar em um novo choque do petróleo, semelhante ao da década de 1970, advertiram analistas.
Com parcerias comerciais importantes no Oriente Médio, incluindo uma agenda em ascensão com Israel nos últimos anos, o Brasil fez malabarismos diplomáticos para que a guerra não abalasse os seus negócios com a região.
“Não dá para escolher um lado. A população desses países é grande: a do Irã é de 88 milhões de habitantes. A da Arábia Saudita, que as pessoas pensam que é um grande vazio, tem quase 40 milhões de habitantes”, analisou Paulo Ferracioli, professor de políticas de comércio exterior e de economia no FGV Management.
“E não é de forma alguma do interesse do Brasil se afastar de Israel, com quem nós estamos fazendo bons negócios na área de agroindústria, mas há muito mais do que isso. Todos os países querem investimentos de Israel em produtos altamente tecnológicos”, destacou.
O Oriente Médio respondeu por 5,1% das exportações brasileiras em 2022, num total de US$ 17,2 bilhões, com balança comercial favorável a Brasília.
“A partir do momento em que há instabilidade na economia internacional, os investidores se retraem e o comércio é dificultado. Qualquer retração no comércio e nos investimentos internacionais vai ser muito inconveniente para o Brasil”, disse Ferracioli.
Em outubro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) manteve inalterada a sua previsão de 3% de crescimento do PIB real mundial neste ano, e revisou para baixo as previsões de 2024. A instituição espera que o mundo vá crescer 2,9% no ano que vem.