2023, o ano em que o planeta alertou sobre os riscos das mudanças do clima

2023, o ano em que o planeta alertou sobre os riscos das mudanças do clima

RFI Brasil
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O ano de 2023 foi aquele em que as evidências do aquecimento global foram tão concretas que até quem resiste a acreditar nas mudanças do clima questionou as suas convicções. Os recordes de calor na superfície e nos oceanos aceleram o derretimento das calotas polares e a ocorrência de fenômenos extremos que castigaram os cinco continentes, com uma violência raramente vista.

O Canadá, por exemplo, perdeu 18 milhões de hectares de florestas durante semanas, nos piores incêndios já ocorridos no país. Para se ter uma ideia do que isso representa, a média dos últimos 40 anos é de 2 milhões de hectares queimados por ano.

No Brasil, a seca inédita da Amazônia e as chuvas torrenciais no Sul foram as faces mais marcantes do ano mais quente já registrado na história da humanidade – com seis meses consecutivos de recordes de temperaturas batidos. Hervé Douville, climatologista francês membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC, afirma que os continentes estão ficando mais secos.

“Nós sabemos que o aquecimento global é proporcional às emissões acumuladas de gases de efeito estufa e quanto mais aumentarmos esse acúmulo, mais o planeta vai aquecer. Então, vai depender das ações do homem, que pode aumentar os esforços para limitar essas emissões”, explicou à RFI.

“Mas sabemos que no nosso sistema econômico isso não é fácil, seja por gargalos técnicos ou de comportamento. Então, até 2050, pelo menos, penso que esta tendência vai continuar e será acompanhada de um aumento e intensificação dos fenômenos de seca e, provavelmente, também de incêndios florestais em regiões onde os meios de prevenção e combate são insuficientes", advertiu.  

El Niño aqueceu ainda mais

A ocorrência do fenômeno climático El Niño só agravou este contexto, e o pior ainda pode estar por vir, já que o fenômeno costuma durar entre um e dois anos. Com aquecimento do planeta e El Niño combinados, o chamado ponto de não retorno da floresta amazônica ficou mais perto, alertaram cientistas como Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Amazônicas (Ipam).

“Esse El Niño é muito forte. O aquecimento das águas do Pacífico, na região do Equador, tem sido muito intenso, e isso causa efeitos sinérgicos com outros fenômenos, como o aquecimento das águas do Atlântico, que também impacta na seca na Amazônia”, disse. “O que tem acontecido é que as mudanças climáticas têm intensificado esse fenômeno e às vezes aumentado a sua frequência também. E quando a gente fala de ponto de não retorno, a gente fala de uma mortalidade tão intensa e de condições que não deixem as árvores retornarem”, salientou a pesquisadora.

“O fogo é um elemento muito transformador e, com certeza, na equação que pode levar a um ponto de não retorno, ele é um elemento fundamental: ele pode vir a inibir o retorno de um certo tipo de vegetação que não resiste às chamas”, apontou Alencar.

Nas áreas mais suscetíveis, a devastação da floresta oscila entre 30% e 40%, e mais de 2 milhões de quilômetros quadrados do bioma estariam muito próximos do ponto de não retorno – ponto a partir do qual a floresta entra em colapso e não conseguiria mais se regenerar.

Queda do desmatamento e ministério indígena

Neste aspecto, a notícia boa é que a volta de políticas nacionais de monitoramento e controle do desmatamento da Amazônia fizeram os índices despencarem em 2023. Foi a maior queda em cinco anos, de 22% até novembro. Outra boa notícia que simbolizou a virada do governo na questão ambiental foi a realização da primeira Cúpula dos Países Amazônicos, por iniciativa do Brasil.

“Existe essa grande preocupação dos países no combate às ilegalidades, no recebimento de um apoio dos países desenvolvidos para que essa região consiga transitar para atividades econômicas de baixa emissão, que geram receita atribuindo valor à floresta em pé, sem necessitar derrubá-la. E que seja genuinamente inclusiva, ou seja, que a gente baseie toda e qualquer atividade econômica e geração de renda com a cultura local, e assim a gente tenha uma divisão equitativa dos benefícios oriundos dela”, ressaltou Patricia Pinho, diretora-adjunta de Ciência do Ipam e membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

Dar mais voz aos indígenas nos processos de decisão foi o objetivo da criação do primeiro ministério da história do Brasil dedicado especificamente aos povos originários, e sob o comando da indígena Sônia Guajajara. A decisão se mostrou ainda mais necessária logo no primeiro mês do ano, quando o drama humanitário que atingia os yanomamis em Roraima há anos virou manchete internacional.

A fome e as mortes em massa de indígenas em terras acuadas por garimpeiros ilegais chamaram a atenção para o desprezo do poder público em relação a essas populações. Quase 600 crianças yanomami haviam morrido por doenças evitáveis ou desnutrição nos quatro anos anteriores.

“Desde 2019, as organizações nacionais entendem que estava em construção e sendo implementada uma política anti-indígena, que tinha não só apoio nos discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro, que imaginava uma nação brasileira sem estes povos, mas também nas suas práticas, ao desmontar as instituições de garantia de direitos dos povos indígenas e permitir invasões, garimpo e mineração ilegal.

A consequência dessa política anti-indígena é a contaminação por mercúrio de crianças, a morte e o adoecimento de muitos povos”, denunciou a advogada Eloísa Machado, que auxilia a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).  

As novas fronteiras do petróleo

Mas apesar dos avanços, a nova política ambiental no Brasil não foi poupada de enfrentamentos com a velha política desenvolvimentista desejada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sob pressão da Petrobras e com forte apoio do Ministério de Minas e Energia, o país visa abrir novas frentes de exploração de petróleo, inclusive na margem norte, a centenas de metros da maior floresta tropical do mundo.

Os projetos abalaram a recuperação da credibilidade internacional do país, que busca retomar o protagonismo nas questões ambientais. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas em Dubai, o maior evento do ano sobre o clima, o Brasil foi cobrado por ser o sexto maior produtor mundial de petróleo e querer subir duas posições até meados do século. O foco da cúpula, realizada em dezembro, era justamente a saída dos combustíveis fósseis dos sistemas de energia dos países.

No encerramento da COP28, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que a decisão da conferência de encaminhar a transição para o afastamento dos fósseis será debatida pela sociedade brasileira. "Esse é um debate que precisa ser feito dentro do Conselho Nacional de Política Energética, que considerará o que aqui foi aprovado em relação a uma trajetória que nos leve a retirar a nossa dependência, de todas as economias do mundo, dos combustíveis fósseis. É uma ação que deve ser pensada no contexto de países produtores e de países consumidores”, indicou.

“Em relação à questão de oportunidade e conveniência da exploração de petróleo não só pelo Brasil, mas na relação com todos os produtores como todos os consumidores, é o debate que está sendo feito a partir de agora. Setor público e setor privado terão que traduzir o compromisso que aqui assumimos em suas ações e planejamentos”, afirmou Marina Silva.