Moçambique: "Geografia do conflito mudou" em Cabo Delgado
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Teve lugar esta quinta-feira, 29 de Fevereiro, um workshop sobre a exploração e governança de recursos naturais e desenvolvimento local em Cabo Delgado, no norte de Moçambique. "Ainda não existem factos suficientes que possam provar que existe uma relação entre a maldição dos recursos e o conflito em Cabo Delgado.", defende o coordenador provincial do Centro Para Democracia e Direitos Humanos (CDD) em Cabo Delgado, Abdul Tavares, que participou no workshop.
RFI: Quais foram as grandes preocupações levantadas durante este workshop?
Abdul Tavares: O workshop pretendia discutir sobre a exploração, a governação de recursos naturais e o desenvolvimento local em Cabo Delgado. Uma das grandes questões que foi levantada é como é que essa exploração pelas empresas multinacionais pode significar a criação de oportunidades e, consequentemente, o bem estar para as comunidades locais.
O conflito surge no momento em que foi descoberto gás natural em Cabo Delgado. Qual é hoje, passados sete anos, a correlação entre o que está a acontecer às populações locais e esta exploração de recursos naturais?
Para aquilo que foi discutido no workshop, essa questão ainda continua por ser desvendada porque ainda não existem factos suficientes que possam provar que existe uma relação entre a maldição dos recursos e o conflito em Cabo Delgado. No entanto, por essa via, a workshop e as pessoas que discutiram olharam para essa questão de forma muito cuidadosa pelo facto de não terem dados suficientes para afirmar categoricamente relativamente a este ponto.
Relativamente a este ponto de que fala, qual é a leitura que fazem aí em Cabo Delgado, onde se encontra?
Até há sete anos atrás, pode ter havido algumas questões que podem estar interligadas com a juventude. Por exemplo, alguns garimpeiros [da mineira] da Montepuez que foram expulsos e depois este elemento é sempre levado em conta quando se fala do surgimento do conflito porque se acredita que alguns desses jovens foram depois levados para a insurgência. Entretanto, como eu disse antes, as pessoas que abordaram esses elementos ao longo do workshop tentaram olhar de forma cuidada, uma vez que não existe uma evidência a respeito deste assunto. Mas são ligações, são leituras e são tentativas de compreensões que diferentes actores têm estado a trazer.
A instabilidade laboral no norte de Moçambique, em Cabo Delgado, a precariedade dos mais jovens, mas não só, tem vindo a conduzir a um maior recrutamento por parte dos insurgentes. É isso que está a dizer?
Não necessariamente, mas são elementos que alguns dos estudos que são feitos ao nível de Cabo Delgado levantam Estas hipóteses. Então, sendo hipóteses, não se pode levar necessariamente como elementos acabados e assumir se de que realmente exista uma ligação directa entre o desemprego de forma geral e o recrutamento para a insurgência. Entretanto, como eu disse, são alguns dos elementos que são levantados sempre que se fala desta questão, uma vez que se acredita que se estes jovens tivessem uma ocupação, se estivessem a trabalhar, não seriam recrutados para a insurgência. Entretanto, temos visto também que existem recrutamentos involuntários em que os terroristas podem entrar dentro de um distrito e sequestrar alguns jovens que podem se encontrar, por exemplo, a desenvolver um comércio, entre outros pontos. Portanto, esses são elementos não acabados. Acreditamos que com um estudo mais aprofundado podem ser desvendados.
Desde o início do conflito, portanto, em 2017, levantaram se inúmeras hipóteses das quais se fala. Como é que está a Cabo Delgado e que transformações decorreram nos últimos anos?
Obviamente que a geografia do conflito mudou, sobretudo nos últimos dois, três anos, com a entrada das tropas do Ruanda e da SAMIM, houve uma fragilização da parte dos grupos armados não estatais que actualmente, como têm acompanhado, têm se deslocado para zonas que antes não eram normais. Recentemente, em Chiúre, onde se acredita que depois de um ataque que foi protagonizado pelas tropas moçambicanas e pelas tropas de Ruanda, eles dividiram-se em pequenas células e estavam à procura de um abrigo ou de um espaço seguro. Portanto, saíram a pé, estavam a fugir e acabaram passando pela zona de Chiúre, onde não ficaram. Nesse contexto, acabaram atormentando a população e a população saiu em debandada, criando uma nova vaga de deslocados internos. Depois de um grande período de normalização em que a população já tinha ou já voltou para os distritos críticos, como por exemplo, Mocimboa da Praia...
E Mueda?
Mueda nunca foi atacado directamente, mas já teve vários grupos de deslocados alojados lá.
O Governo moçambicano avançou recentemente que está a preparar condições para uma eventual saída das forças da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Existem condições para esta saída quando, como acaba de dizer, milhares de pessoas fugiram dos ataques armados das últimas semanas na província de Cabo Delgado. O governo avança com números de 67.000 pessoas deslocadas nos últimos dias.
Penso que esta decisão não foi tomada hoje e nem tinha em conta o que está a acontecer agora. É uma decisão que já vinha desde o ano passado, quando se tomou esta decisão de retirar de forma faseada as tropas da SAMIM que vai ser concluída nos meados deste ano. Portanto, penso que hoje, por exemplo, se olharmos para as condições, existe informação se calhar classificada em relação a isso, mas o que nós temos acompanhado é que o governo moçambicano tem recebido apoios em termos de treinamento, parte de mecanismos da União Europeia e de alguns países, de forma particular, para melhorar as condições das forças de defesa e segurança. Se calhar estavam em formação e talvez estejam, hoje, preparados para tomar o espaço que vai ser deixado pelas tropas da SAMIM.
"O recrudescimento dos ataques e da movimentação dos grupos terroristas na província de Cabo Delgado não vai condicionar a realização de eleições gerais marcadas para outubro deste ano", garantiu a Comissão Nacional de Eleições, que garante também que o recenseamento eleitoral vai arrancar a partir de dia 15 de Março. Há condições em Cabo Delgado para que decorra este processo de recenseamento e mais tarde, a 9 de Outubro, as eleições?
Penso que é muito cedo para medir se há ou não condições para a realização das eleições. As eleições serão em Outubro deste ano e se calhar o governo e as instituições de governação eleitoral tenham em manga um plano que possa operacionalizar este processo. Sem dados, não consigo fazer uma leitura muito profunda sobre este ponto.
Quanto ao recenseamento eleitoral, já que se encontra em Moçambola da Praia, há condições para as pessoas se recenseaarem sem medo? Criar um dispositivo para este recenseamento eleitoral já dentro de duas semanas, a partir do dia 15 de Março?
Neste ponto existe a experiência das eleições autárquicas do ano passado, que, em primeiro lugar, também demandaram o processo de recenseamento. Penso que se calhar as instituições de governação eleitoral estejam a pensar nesta estratégia que usaram, neste conhecimento e nesta experiência que tiveram do pleito passado. Penso que estes são os elementos que posso avançar sobre este ponto.
Resta saber se realmente vai haver pessoas na província de Cabo Delgado para votar, já que existe esta fuga massiva de milhares de pessoas que fogem de ataques e que, portanto, provavelmente não se vão recensear também em consequência, não vão poder votar nas eleições gerais.
Sim, por isso eu disse que antes, por exemplo, quando ainda estava a iniciar o processo de recenseamento no ano passado, no distrito de Mocimboa da Praia para as eleições autárquicas, muitas pessoas ainda não tinham regressado para Mocimboa da Praia e as instituições de governação eleitoral encontraram uma forma para as pessoas regressarem, se recensearem e votarem. Penso que existe, obviamente, um plano quando uma instituição aparece a falar sobre a criação de condições, penso que existe um plano a respeito disso para poder colmatar esta falha.
Um plano que implica garantir a segurança na região, não é?
Exactamente, sim.