História africana em Lisboa ganha visibilidade com busto e placas toponímicas

História africana em Lisboa ganha visibilidade com busto e placas toponímicas

RFI Português
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A presença africana em Lisboa tem milénios. Parte dessa história foi recentemente resgatada e ganhou visibilidade nas ruas da capital portuguesa.

A associação cultural e juvenil Batoto Yetu Portugal, que trabalha com crianças, jovens e adultos interessados na cultura africana, colocou 20 placas toponímicas e um busto (em homenagem a "Pai Paulino") que ajudam a contar a história de Portugal.

Nas placas estão identificadas personalidades e locais marcantes da Lisboa africana desde o século XV.

Aquilo que "não se aprende nas escolas ou não se vê com frequência nos órgãos de comunicação" sobre a história africana está agora mais visível, mais acessível.

O vice-presidente da Batoto Yetu, José Neves, que falou com a RFI sobre o trabalho da associação na sensibilização da comunidade para as questões da cultura africana, começa por nos revelar que a iniciativa de colocar placas toponímicas surgiu a partir da investigação para um espectáculo.

RFI: Como é que a iniciativa surgiu?

José Neves: É uma continuidade do trabalho que nós já fazemos com a Associação, de sensibilizar a comunidade maioritária portuguesa para as questões da cultura africana e tentar transmitir aos jovens e às crianças, e adultos da comunidade africana um pouco mais sobre a sua história; aquilo que não se aprende nas escolas, que não vemos com frequência na televisão ou nos órgãos de comunicação. E, portanto, nós, por intermédio da dança tradicional, que é o nosso forte, aprendemos sempre muita história, e chegou uma altura em que decidimos estudar sobre a existência de danças africanas em Portugal. Foi um trabalho de pesquisa. Fomos a vários conservatórios de música falar com professores e historiadores. Fez-nos chegar aqui, às origens do fado, ao fado dançado, no fundo que tinha aqui influências mouriscas, africanas, embebido na cultura portuguesa lisboeta, um produto lisboeta mas que tinha percussão, tinha uma dança considerada erótica e tinha um canto, um lamento, um choro. Fado é uma espécie de um "portuguese blues". E quando fizemos essa recolha de informação para criar um espectáculo de fado dançado, acabámos por tomar conhecimento destes sítios onde as pessoas viviam, dançavam, comiam, enfim, tomámos conhecimento sobre esta presença africana e daí decidimos fazer estas ‘tours’ para, mais uma vez, dar a conhecer às pessoas esta cultura africana, a influência na cultura portuguesa. Já falei do fado, mas existe na gastronomia, nas próprias doenças que nós temos, na arquitetura, enfim, em variadas outras áreas. E, portanto, é uma forma gratuita de dar acesso, de despertar o interesse. Fazer com que as pessoas queiram ir procurar por si só um pouco mais de informação, pensarem naquilo que nós vemos no nosso espaço público, aquilo que aprendemos e o quanto mais há para aprender sobre a cultura africana, os vários povos africanos. Nós tendemos a associar a história africana ao colonialismo ou à escravatura, mas há muito mais para além disso. Há mais para trás. Portanto, temos outras presenças africanas, cartagineses, fenícios, egípcios, o período mourisco, mesmo no período romano ou mesmo nas anteriores migrações do continente africano. Nós temos cá múmias em Portugal, temos umas múmias ali no sul do país que se chamam concheiros, concheiro do Sado e concheiro de Muge e que tem também alguma ligação ancestral a estas migrações antigas, 8000 anos, dos seres humanos. Portanto, basicamente não deveria ser nada de muito inovador, porque estamos a falar das migrações das pessoas saindo do continente africano, que era onde a humanidade nasceu e onde esteve mais tempo.

 

 

RFI: Falando concretamente destas placas toponímicas, há algumas personalidades que são mencionadas. Que personalidades são essas? 

José Neves: Focando neste início de projecto associado ao estudo do fado dançado, posso fazer referência, por exemplo, ao Domingos Caldas Barbosa, que era um músico tocador de lundum, lundum é uma espécie de pai do fado e da morna cabo-verdiana, e era um tocador de lundum, da modinha, da fofa, de géneros musicais e de dança que existiam cá em Lisboa e que depois acabaram por constituir uma grande parte daquilo que era o fado. E é a imagem que se vê, por exemplo, no Museu do Fado, associado ao início da história do fado. Ele tem uma placa aqui perto do campo Mártires da Pátria, que era um local onde agora é a Embaixada de Itália, onde se reunia para confraternizar e socializar e, portanto, tem lá uma placa a dar esta lembrança de quem ele era. Ele era uma das pessoas precursoras da música popular brasileira e que, no fundo, depois fez-se famoso cá também, fez-se adorado pela elite portuguesa, e isso fez com que o estilo de música de rua que era o fado passasse um pouco para os salões da burguesia e ganhasse a dimensão que tem hoje. Outra pode ser, por exemplo, o Dr. Sousa Martins, também no Campo Martins da Pátria, um médico que tinha umas características diferentes na sua forma de trabalhar, uma forma um pouco mais espiritual, tanto é que é uma espécie de um culto que se mantém até aos dias de hoje. Era um português de Alhandra, mas de origens africanas também. Podemos falar também aqui do Largo de São Domingos, da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Uma congregação onde as pessoas negras se organizavam para fazer parte da sociedade portuguesa, ajudar nos eventos, procurar emprego, oferecer serviços. Como nós vemos ainda hoje em dia aqui na zona do Largo São Domingos a presença africana, bastante forte, tem a ver com esse legado antigo. Portanto, sempre foi um local desse encontro, e, portanto, daí termos colocado uma estátua relativamente a uma dessas pessoas, que é o Pai Paulino, ali, exactamente no Largo de São Domingos. Podemos falar de zonas da zona ribeirinha do Rio, a Praça do Comércio, o Cais do Sodré, tudo zonas de contacto, zonas onde chegavam os barcos com algumas pessoas escravizadas. Portanto, também há esta necessidade de mostrar que a presença africana não está só vinculada a pessoas escravizadas. Havia pessoas contratadas para trabalharem nos navios, na construção dos navios, no trabalho com o ferro. Portanto, os africanos da zona do Benim, que tinham esse conhecimento já bastante ancestral, ou navegadores que conheciam a orientação pelas estrelas na zona do Equador, abaixo do Equador, o Cruzeiro do Sul. Mas nós raramente aprendemos sobre esses navegadores africanos que também existiam. E achamos que transmitir isto à sociedade portuguesa, não só às pessoas de origem africana, mas a toda a gente, ajuda-nos a conhecer um bocadinho melhor os outros, os contributos positivos. Já ouvimos isso de outros povos, dos celtas, dos romanos, dos godos, visigodos, e é apenas mais um complemento a questão do povo africano.

RFI: O trabalho da Associação Batoto Yetu está acessível através do digital. Quem for à procura, onde é que pode procurar e o que é que vai encontrar?

José Neves: Nesta continuidade de tentar providenciar estas informações de forma mais abrangente e gratuita possível, temos recolhido livros, informações, histórias, testemunhos e estamos a adicionar no nosso site, batotoyetu.pt, de Portugal. É uma plataforma de memória digital africana, portanto no fundo, que quer colocar mais informação para outros poderem ir estudar, para outros poderem fazer trabalhos académicos, peças artísticas, músicas, representações, outro tipo de “tours” noutras zonas do país. Porque há muita gente que nos pergunta,  bem de onde é que tirámos esta informação ou outra. Então, acabámos por fazer uma espécie de compilação destas fontes bibliográficas, da nossa própria experiência, porque a nossa própria experiência também é ela criadora e faz parte da própria plataforma como momento de criação associado a este este assunto. Também abordamos outros trabalhos de outras associações, porque não somos só nós que fazemos este tipo de trabalho. Há outras associações afrodescendentes que também trabalham estas temáticas. E, portanto, a plataforma digital é uma forma de aceder, e pronto, por este intermédio vamos trocando informação com académicos. Vamos reforçando aqui a nossa, a nossa história. No fundo, é reforçar a história portuguesa com mais informação.

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