Álvaro de Vasconcelos: "Falta-nos coerência na política internacional"

Álvaro de Vasconcelos: "Falta-nos coerência na política internacional"

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Álvaro de Vasconcelos, autor e especialista em relações internacionais organiza um ciclo de conferências, em Paris, intitulado "Percurso de intelectuais no exílio:um humanismo sem fronteiras", que questiona o contributo destes exilados na vida democrática do país que os acolhe. Sejam da Europa do Leste, com Milan Kundera, do Médio Oriente, com a franco-síria Bassma Kodmani, de França, com André breton, ou de Portugal, com Mário Soares, todos têm um ponto comum: a multiplicidade de identidades. 

Que valores e ideiais trazem os intelectuais exilados para o país que os acolhe? Qual é o seu contributo para a vida democrática e a liberdade de expressão e opinião no país onde encontram refúgio? Álvaro de Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos da União Europeia, organiza em Paris, com a Fundação Calouste Gulbenkian, um ciclo de conferências sobre o exílio político, uma experiência que ele próprio viveu na década de 1970, fugindo da ditadura portuguesa para França.

Subida da extrema-direita 

Álvaro de Vasconcelos decidiu organizar este ciclo de conferências por achar que se vive na Europa, um momento em que se desmoronam "os valores de solidariedade, compaixão e aceitação do outro", o que nos leva a pôr em causa o acolhimento dos outros, "sobretudo aqueles que são perseguidos noutros países do mundo". 

A experiência do exílio difere, claro, consoante as épocas. "Não é a mesma coisa que era no tempo em que fui exilado em França, entre 1969 e 1974. Na altura, a França era realmente terra de asílio. Hoje, já não é visto da mesma maneira e existem aliás debates intensos na sociedade francesa em torno desta questão." 

"Essa ideia que a França era a terra da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade era uma das grandes motivações que nos levava a vir para França em vez de outros países". O que mudou? A sociedade francesa está atravessa por debates intensos, que já levaram à recente adopção da polémica lei de imigração, aponta o autor e analista, "lembrando que as ideias da extrema-direita se banalizaram e têem uma grande influência".

Em 1973, Álvaro de Vasconcelos, exilado em França para fugir à ditadura salazarista em Portugal, assistiu à primeira grande manifestação em Paris da Ordem Nova, um partido herdeiro do fascismo (que veio dar origem à Frente Nacional e agora à União Nacional). E recorda: "Fizeram uma manifestação naqueles anos, mas era insipiente", contrapondo com a maior expressão e visibilidade da extrema-direita a que se assiste actualmente.  

Neste ciclo de conferências, cada debate tratará, portanto, de relembrar que a França foi uma terra de asilo e que isso contribuíu para a luta pela liberdade noutros países do mundo. Importante, sobretudo, para Alvaro de Vasconcelos homenagear "o contributo que os exilados deram para a vida intelectual política e cultural da França". 

Cerca de cinquenta anos depois de uma onda democrática que viu acabar as ditaduras italiana, alemã, espanhola e portuguesa, vive-se na Europa e no mundo "uma vaga autocrática".

Português (mas não só) de sangue e coração, Álvaro de Vasconcelos referiu-se ao caso luso que, não deixando de estar inserido num contexto geral da subida da extrema-direita, revela as suas particularidades. De notar, antes de mais, que se assiste em Portugal, pela primeira vez desde o fim da ditadura salazarista, em 1974, à criação de um partido de extrema-direita, o Chega, e à sua crescente preponderância no debate político nacional.

"Pensávamos que Portugal era uma excepção, porque fizemos uma revolução há 50 anos, saímos de uma ditadura de extrema-direita e portanto sabemos o que é. Mas há também toda uma nova geração que nasceu depois do 25 de Abril, que não tem verdadeiramente noção do que era a ditadura, que embeleza o passado, olha para o presente com preocupação, e com muita inquietação para o futuro, e vota na extrema-direita."

Aliás, "Memórias em tempo de amnésia", título da sua última obra, refere-se precisamente ao facto de, segundo ele, nos termos esquecido o que é uma ditadura de extrema-direita.

Para quem viveu o 25 de Abril, assistir cinquenta anos depois à chegada de um novo partido de extrema-direita, "com força", cria "inquietação", claro. Mas o antigo exilado garante, não voltará a fazê-lo, e ri-se. Porque mesmo que haja uma subida exponencial do Chega, "não chegará, nesta fase da história política, para pôr e causa a democracia portuguesa", confia.

"Os partidos do centro, e os partidos democráticos ainda são extremamente fortes. Aliás, uma das características desta campanha eleitoral, que eu vejo com aspecto positivo, foi a capacidade que os líderes democráticos tiveram para desconstruir, nos debates eleitorais, a demogagia do Chega. Isto não trava o voto no Chega. Mas pelo menos mostra que os partidos democráticos portugueses não vão atrás dos discursos da extrema-direita."

Porque o grande risco que se corre, considera "é precisamente esse, o da contaminação do discurso da direita democrática pelo discurso da extrema-direita". "Isso em Portugal, por enquanto, não está a acontecer". 

É o que se vê, no entanto, em França, perguntamos-lhe? "O que se vê em muitos países europeus", concede, "incluíndo em França". 

Falta de coerência internacional sobre a "hecatomba" em Gaza 

"Angústia, tristeza e revolta" são as três palavras escolhidas por Álvaro de Vasconcelos quando se refere a Gaza. 

"Angústia porque vejo que nada se faz para parar uma hecatomba humana. Milhares de crianças mortas, de mulheres e seres humanos que estão a ser mortos todos os dias sem que ninguém faça nada para o travar. Revolta porque já vimos isso noutros sítios. Sabemos que a comunidade internacional tem uma palavra importante a dizer, mas a Europa está dividida sobre essa questão, e os Estados Unidos que deveriam ter um papel fundamental, não têm."

Nem o olhar de especialista em relações internacionais e geopolítica o ajuda a perceber porque é que a comunidade internacional (Estados Unidos à frente) "deu um cheque em branco a Israel para cometer um crime contra a humanidade", garante. "Nada justifica o crime do Hamas, como nada justifica a hecatomba, o morticínio, que se pode transformar num genocídio [em Gaza], como aliás o Tribunal penal internacional disse."

Não é fatalismo, é decepção. Porque, do fundo do seu optimismo, Álvaro de Vasconcelos garante que uma pressão internacional conjunta sobre Israel teria resultados.

"Nós sabemos que Netanyahu [Primeiro-ministro israelita] é o que é. Um político de extrema-direita, e que será difícil forçar a fazer o que ele não quer fazer. Mas, uma pressão muito forte dos Estados Unidos, com apoio da União Europeia teria, evidentemente, consequências e pelo menos nos daria um sinal de coerência, de que tanto precisamos, em relação à nossa política internacional".

A próxima conferência do ciclo "Percurso de intelectuais no exílio:um humanismo sem fronteiras"será sobre os exilados franceses durante a segunda Guerra Mundial, a 19 de Março.

Já a 22 de Abril, três dias antes do simbólico quinquagésimo aniversário da Revolução dos Cravos, os exilados portugueses estarão no centro do debate, à volta da figura histórica da oposição à ditadura (e Presidente de 1986-1996) Mário Soares. Uma conferência que contará ainda com a presença do sociólogo e filósofo Edgar Morin.