"Navalny foi o exemplo que existe uma Rússia para além de Putin"

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RFI Português
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Alexeï Navalny morreu na sexta-feira passada e, pelo terceiro dia, as autoridades russas negam a entrega do corpo à família. O opositor russo foi detido em Janeiro de 2021, condenado em Agosto de 2023 a 19 anos de prisão. As causas de sua morte ainda desconhecidas. "Navalny é portador de uma causa: haver uma Rússia além de Putin", defende a especialista da Rússia ligada à Universidade do Minho, Sandra Dias Fernandes.

RFI: A notícia da morte Navalny surpreendeu?

Sandra Dias Fernandes: A morte de Navalvy não foi propriamente uma surpresa, foi um choque. A situação do opositor Alexeï Navalny que optou por fazer oposição não a partir do exílio, mas a partir do interior do sistema russo, e no caso significou prisão e maus tratamentos, não indiciava que tivesse um final feliz. Desde que voltou a ser encarcerado neste último período, ou seja, a partir do início de 2021, muito me surpreendia que Navalny se mantivesse vivo. Ele morreu no momento em que Putin julgou mais oportuno para finalizar os seus objectivos e mostrar que está em pleno controlo dos destinos da Rússia.

Navalny tornou-se um símbolo que representa todos os russos que sonham com democracia e paz. Ele foi o exemplo que é possível haver uma oposição na Rússia?

Ele foi sobretudo o exemplo que existe uma Rússia para além de Putin. A ideia de que pode existir oposição na Rússia é uma espécie de luto que já foi feito há muitos anos. O regime repressivo do Presidente Putin foi sendo, paulatinamente, construído de mão-de-ferro desde que ascendeu ao poder em 2000 como Presidente. O luto de uma Rússia democrática já foi feito há muito tempo, as dificuldades são cada vez maiores, sobretudo depois da invasão da Ucrânia, em Fevereiro de 2022, as medidas foram ficando mais restritivas, severas e punitivas para que não haja possibilidade de organização da sociedade civil. Navalny é sobretudo portador de uma causa que é: há Rússia para além de Putin, mesmo se neste momento o sistema está tão fechado que não é possível haver uma alteração de regime que não seja por um golpe de Estado, por exemplo, e não pela acção da sociedade civil.

Nos últimos dias, centenas de pessoas na Rússia prestaram homenagem a Navalny, criando memoriais improvisados nas ruas. A polícia deteve mais de 400 pessoas. Nada parece poder travar Vladimir Putin?

É verdade.. Existem polícias vestidos à civil que à medida que os populares colocam flores, são automaticamente retiradas. Podemos lembrar-nos de um dos grandes opositores Boris Nemtsov que foi assassinado em 2015 em plena praça pública. Ainda hoje há populares que colocam flores nesse mesmo local, percebemos que há uma grande emoção pela morte trágica e infeliz de um jovem, Navalny tinha 47 anos. Há um sentimento popular, mas completamente abafado e as penas são muito severas. Pela primeira vez, a polícia russa emitiu um mandato contra um líder estrangeiro - que é o caso da primeira-ministra da Estónia - isto vai tão longe quanto as autoridades russas considerarem que têm capacidade e devem imiscuir-se em países soberanos como a Estónia. Temos um ambiente cada vez mais degradado e uma ameaça feita pela Rússia sobre qualquer ideia de oposição àquilo que é considerado a sua verdade histórica. O caso Navalny insere-se nesta grande tendência de autoritarismo russo.

Na sexta-feira, Emmanuel Macron recebeu Volodymyr Zelensky, em Paris. O chefe de Estado francês deu a entender que Vladimir Putin tinha medo de Navalny, revelador de um regime que tem medo. A morte de Navalny vai ter algum impacto nas posições e decisões das lideranças mundiais?

É um pouco difícil perceber o alcance das reacções, nomeadamente, do Presidente Macron para além do simbolismo. Já havia sanções contra a Rússia devido ao Navalny, aliás há um novo sistema jurídico desde Dezembro de 2020 que existe na União Europeia e que aplica sanções devido a violações de direitos humanos. Essas sanções vão passar a chamar-se 'sanções Navalny', precisamente porque a primeira vez que foram aplicadas foram por causa do caso Navalny. Para além do simbolismo, neste momento não se vislumbram elementos capazes de impactar directamente a Rússia. Vamos continuar a assistir a países que querem defender os valores liberais, que vão apoiar as vozes livres que estejam dentro ou fora da Rússia. Em temos de alteração de regime não há qualquer perspectiva realista, neste momento, disso acontecer.

Bruxelas avança com novas sanções contra a Rússia depois da morte de Navalny. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, anunciou esta manhã que a Europa vai manifestar uma posição de apoio à oposição russa que tenta enfrentar Vladimir Putin. Yulia Navalnaya, viúva de Alexeï Navalny, vai ser recebida esta tarde em Bruxelas pelo presidente do Conselho Europeu. Estes dados também fazem parte da ordem do simbólico, como estava a dizer?

Na ordem do simbólico, mas também está relacionado com o momento que se vive na guerra na Ucrânia, um momento de maior alarmismo. Esta morte de Navalny por ser tão chocante; embora não sendo uma surpresa, é uma espécie de selar de qualquer ilusão sobre o que é Putin, o seu regime e quais os projectos imperialistas e ditatoriais para o seu país. Além do simbolismo penso que contribui para este momento de maior alarmismo, sobre a que deve ser a nossa relação com Rússia e a preparação para o conflito.

A morte de Navaly pode mudar a posição nos Estados Unidos, nomeadamente, a ala trumpista que apoia Vladimir Putin?

É difícil responder a essa pergunta, não me parece que haja uma relação de causa/efeito muito directa. Infelizmente, Navalny é um símbolo muito grande e uma pessoa de grande valor universal. Houve outras mortes antes dele, o homicídio como acto político por parte do regime de Putin começou a ser cada vez mais sistemático a partir de 2006, com a dupla morte da jornalista Anna Politkovskaya e do ex-espião Alexander Litvinenko. Não sei se iremos assistir a um momento mediático que irá esmorecer e o impacto da na ala mais trumpista do partido Republicano parece-me que será algo marginal, relativamente à posição ideológica desses membros do partido Republicano.

 A Família de Navalny ainda não conseguiu aceder ao corpo de Alexeï Navalny. Os advogados da família foram expulsos da morgue onde estará o corpo do activista russo. A informação foi avançada esta manhã pela porta-voz da equipa de Navalny, que acrescenta que os investigadores russos ainda não apuraram as causas da morte do principal opositor de Vladimir Putin. O que explica estes entraves?

 A Rússia é exímia em usar o aparelho burocrático e administrativo para firmar um regime fechado e autoritário. Tem experiência histórica disso durante a época soviética, durante a época czarista e Putin é o herdeiro dessa fama de exercer o seu poder. Isso indica que são opacas as circunstâncias nas quais Navalny morreu. Ele pode muito bem não ter morrido na sexta-feira, pode ter morrido muito antes do que sexta-feira.  As autoridades russas estão por um lado a continuar a demonstrar a sua capacidade de controlo da verdade, das narrativas do que acontece na Rússia e, por outro lado, penso eu - são puras conjecturas que são prováveis face aos precedentes -  de maquilhar as causas da morte verdadeira de Navalny. Estas duas dimensões explicam o porquê da não devolução dos restos mortais de Navalny à sua família para um funeral do grande Navalny.

As eleições presidenciais na Rússia vão decorrer em Março é possível que Presidente em exercício, Vladimir Putin, se mantenha no poder, que ocupa desde 2000 – tanto como chefe do Kremlin como primeiro-ministro – caso vença completa um mandato de 6 anos, e estará 30 anos no poder, mais tempo do que qualquer outro líder russo ou soviético desde o czar Pedro, o Grande. Qual a leitura que podemos fazer caso isto venha acontecer?

Uma leitura muito negativa se cruzarmos essa permanência no poder com o perfil pessoal e os objectivos políticos internos e externos do Presidente. É o Presidente que faz uma ruptura completa com a aliança União Europeia com a Rússia, uma ruptura completa com uma transição com a democracia e uma ruptura completa da identidade europeia da Rússia. É uma leitura pouco positiva sobre o futuro do continente europeu e a reorganização da balança do poder mundial; a China está a assumir um papel hegemónico, igual ou superior aos Estados Unidos da América. É uma leitura pouco positiva para aquele que é o projecto de integração do continente europeu e de pacificação do continente.

O que se pode esperar caso Vladimir Putin se mantenha no poder. A manutenção do que tem acontecido nos últimos dois anos?

Diria a degradação do que tem acontecido nos últimos dois anos. No sentido de, e já é público através de relatórios produzidos pelos Estados Bálticos, de numa perspectiva de a dez anos haver um confronto directo entre os países da NATO e a Rússia.