Cabo Verde livre de malária é “ganho histórico”

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A Organização Mundial da Saúde certificou Cabo Verde como país livre de malária. Este é “um ganho histórico”, sublinha Adilson de Pina, responsável pelo Programa de Eliminação do Paludismo em Cabo Verde, que falou à RFI sobre as etapas da luta contra a malária no país, as perspectivas que se abrem com esta conquista, como é que se evita a reintrodução da doença no arquipélago e até que ponto é possível sonhar com a erradicação da malária em África.

RFI: O que significa para Cabo Verde esta certificação da Organização Mundial da Saúde?

Adilson de Pina, responsável pelo Programa de Eliminação de Paludismo em Cabo Verde: "Cabo Verde foi certificado como país livre do paludismo. Isso significa que o país, a nível da doença do paludismo, deixa de registar casos locais de paludismo. Um dos critérios para a certificação da OMS é passar pelo menos três anos sem casos locais, o que significa que qualquer pessoa em Cabo Verde, qualquer pessoa que visite Cabo Verde e qualquer cabo-verdiano em Cabo Verde, está livre de contrair a doença, o que é um ganho histórico, sobretudo, para os países africanos.

A nível da história do paludismo em Cabo Verde, desde a sua colonização, o país teve períodos nos anos 1940, 1950 em que mais de 50 por cento das hospitalizações eram devidas ao paludismo. Houve momentos em que foram criadas equipas de brigadas de luta contra a doença, nos anos 70 e 80. E por dois momentos consecutivos, o país também tinha chegado a esta eliminação desses casos locais. No primeiro momento, durante cinco anos, e no segundo momento, durante três anos. Mas a seguir a essas duas situações, o país voltou a ter casos, centenas de casos.

Em 2017, foram registados 423 casos locais, últimos dos quais em Janeiro de 2018. A partir daí, o país reorganizou e reorientou as políticas, as intervenções, as acções de luta contra a doença, chegando a que, desde Janeiro de 2018 até à data, o país deixou de ter esses casos locais.

Portanto, esta certificação significa, além de tudo o mais, a reorganização das intervenções, a eliminação dos casos locais e um sistema de vigilância robusto que é capaz de detectar todos os casos importados que entram no país."

Que vantagens práticas vai ter para Cabo Verde, por exemplo, em termos de estruturas de saúde e até para o próprio turismo?

"As vantagens: primeiramente é que o povo cabo-verdiano não sofre da doença, é menos uma doença que deixa de ser uma preocupação para nós. Significa melhor qualidade de vida e melhor saúde. É  uma vantagem enorme a nível turístico. Isto significa que qualquer turista, em qualquer parte do mundo, ao decidir visitar qualquer país, Cabo Verde certamente estará na lista prioritária, uma vez que o turista que visita o país sabe que não corre o risco de ter uma doença mortífera a nível mundial. Nós sabemos que há mais de 600 milhões de casos que acontecem por ano e mais de 90% dos casos acontecem em África. Cabo Verde, sendo um país africano da África subsariana que não tem casos de paludismo local, significa que é um país certamente elegível para pessoas que querem ter um turismo saudável e um turismo sem risco de contrair o paludismo."

Falou em 600 milhões de casos, 90% em África. No continente africano, só há quatro países livres de paludismo, nomeadamente Cabo Verde que é o quarto. Como é que isto acontece?

"Argélia, Maurícias, Marrocos e Cabo Verde que é o quarto país [no continente africano]. Cabo Verde acaba por ser uma referência em África porque também a questão do paludismo exige o seu trabalho. Não é só diagnosticar e tratar dos casos, é a questão do sistema de saúde, é a questão da educação das pessoas, é a questão da sensibilidade à saúde, é a questão do saneamento, é a questão do meio ambiente. Portanto, são um conjunto de factores e Cabo Verde tem uma vantagem que é a seguinte: o facto de sermos ilhas. Aliás, temos dados de que há 35 anos e muito mais, há dezenas de anos, os casos tinham sido restritos às ilhas de Santiago e Boavista. Boavista registou os últimos casos em 2015. Praia, a capital do país, na ilha de Santiago, registou os últimos casos em 2017. O facto de sermos ilha é uma vantagem.

A nossa questão do sistema geral da saúde também é uma vantagem, as pessoas têm acesso ao sistema de saúde e as estruturas centrais estão preparadas para a doença, as pessoas têm um certo nível de literacia em saúde e a questão da educação é bastante alta, quase 100% da população jovem, hoje em dia, é escolarizada.

 São todos esses factores associados que levaram a que o país atingisse este nível. É uma referência em África. Sabemos que a Nigéria, a República Democrática do Congo, Moçambique e outros países, quatro países são responsáveis por 50 dos casos de paludismo no mundo. Nós estamos numa situação ao contrário. Isso significa também que o país passa por ser uma referência e aquilo que se fez em Cabo Verde poderá certamente transferir-se para outros países, de acordo com a realidade de cada país."

Servir de exemplo?

"Exacto. Servir de exemplo para que outros países também tenham essa ambição e certamente que é possível porque nós temos que ter uma estratégia estratificada. Os países africanos, elaborando essa estratificação - onde há mais casos e onde há menos casos; zonas de risco alto, baixo e médio; como é que as intervenções poderão ser alocadas de acordo como nível de risco de cada região e de cada país."

Como é que se evita a reintrodução da doença no país?

"A questão da reintrodução é um desafio enorme porque eliminar, se calhar, é fácil, a gente sabe onde é que está, o que é há que fazer. Agora, o problema é essa questão da prevenção e da reintrodução porque nós não sabemos onde estão os casos. Essa prevenção passa, sobretudo, por ter um sistema de saúde robusto e funcional, um sistema de vigilância sanitária. Essa vigilância acaba por ser sobretudo a vigilância epidemiológica, mas também a vigilância entomológica. Isto quer dizer que temos que saber onde há casos, detectá-los, tratá-los e segui-los adequadamente, mas também ter uma vigilância entomológica e isso significa o trabalho com os mosquitos; saber onde estão os mosquitos; qual é o comportamento desse mosquito; se esse mosquito tem a capacidade de, se a pessoa ficar infectada, completar o ciclo de vida e transmitir o parasita.

Ou seja, essa questão de vigilância e o sistema robusto de vigilância têm que funcionar no país, mas também temos de trabalhar com as pessoas porque o paludismo é uma doença muito relacionada ao comportamento. As pessoas que viajam de Cabo Verde para países endémicos, mas também pessoas que vêm visitar Cabo Verde, têm que estar atentas, têm que saber que é um país livre do paludismo e que mediante qualquer sintoma que poderá ser relacionado com a doença, é procurar uma estrutura de saúde e o diagnóstico é gratuito, o tratamento e o seguimento. Isso significa também que a parte da sensibilização das pessoas, tanto nacionais como estrangeiras, sobretudo nos portos, nos aeroportos, nos pontos de chegada, é um trabalho também que tem que ser feito para que as pessoas tenham essa consciência e ajudem-nos a manter zero casos de paludismo no país."

Em todo o continente africano, há quatro países livres de paludismo, nomeadamente Cabo Verde. Quando é que se pode sonhar com a erradicação do paludismo em todo o continente?

"Isso é uma meta ambiciosa, muito ambiciosa. Já existem parâmetros, já existem metas, aliás, o próprio ODS [Objectivos de Desenvolvimento Sustentável] estipula para 2030 a erradicação desta doença. Existe um plano global estratégico que também delimita esse período, é 2030. É claro que já estamos a seis anos, certamente chegando a 2030, haverá novas metas, assim como aconteceu no passado, haverá novas avaliações.

Diria que não é de todo impossível. É possível se cada um fizer a sua parte. Mas, como disse, há vários factores, é preciso trabalhar todos os factores e ver qual é a relação de cada um dos factores com a doença. Esses exemplos de Cabo Verde, Marrocos, Maurícias - é claro que estamos a falar aqui de países muito específicos, Cabo Verde é um país arquipelágico, fora do continente; Maurícias… Mas temos o exemplo de Marrocos e da Argélia, que poderão ser também bem aproveitados e, pouco a pouco, que estes quatro países sirvam de exemplos para que as intervenções, as estratégias sejam replicadas nos demais países e que passamos sonhar com um mundo, sobretudo África, sem paludismo. É o grande sonho de todos nós, técnicos da área da saúde."